quarta-feira, março 06, 2013

Trecho inicial d'um livro que nunca será escrito — É Óbvio Que Foi Assim!





A menina esfregou a noite que tinha nos olhos e se deitou. O pai estendeu a coberta por cima dela e lá fora era quase silêncio. 
— Amor, podem dizer qualquer coisa, mas estou convicto de que Deus é mulher. O mundo nasceu de nove meses. Pergunte à sua mãe.




Antes do mundo havia essa mulher, que é Deus, e que estava grávida. Ela tinha uma máquina de costura. De linha e pano azul, fez um macacão de vestir seu filho. Os pés dela no pedal da máquina, ansiosos, iam para cima e viam repetindo-se em gesto bonito.  É muito amor essa espera. Ela olhava a barriga crescendo o mundo e lhe imaginava engatinhando no firmamento. Pendurou sol e estrelas no quarto dele. 
O mundo nasceu nu como você, filha — como a gente. Era uma brancura de isopor, vazio das coisas, nem música tinha. Cobriram-lhe de vento, verde e abismos — cheio de chão que era cachoeira não tinha passeio. O choro dele calado, as estrelinhas penduradas no teto e a Mãe sussurrando seu sono. Gira mundo, meu filho, dizia ela. 



O mundo foi a primeira criança. Antes mesmo de saber andar direito, dançava. 



A Mãe do mundo lhe contava também histórias antes de dormir. Foi aí que ela inventou a gente, e hoje a história que o mundo mais gosta de ouvir é você, minha filha. Só que para inventar a gente, ela teve que inventar antes os elefantes lá da África, inventou também que eles nunca se esqueciam, isso faltou um pouco em nós de tanto que sobrou neles, daí teu pai ser de esquecer onde colocou as chaves e os chinelos. Vieram antes também os gorjeios agudinhos dos passarinhos amarelos. Primeiro que a palavra veio o canto.  É dessa verdade o sorriso afinado de sua mãe. É, Maria Luiza, sua mãe mesmo, nossa vida! e não a Mãe do mundo que é Deus. Aquela musica que ela tem no sorriso é um refinamento do gorjeio. Presta atenção, amor, vê como faz sentido tudo: O que veio antes da gente foi inventado para que existíssemos assim. O avião, por exemplo, só existe porque antes deles existiam as aves. É como unha que cresce ou para gente roer ou para tocar violão, e as portas trancadas estão aí para caber chave. 
O mundo se entediava de ouvir as mesmas coisas, então Deus-Mãe inventava sempre em medidas diferentes, de trotes de cavalos à saia rodada de bailarina. Criança que era, ficava curioso de tudo, os olhos novinhos de verem coisas, indagavam das aparentes obviedades, tudo lhe fascinava. Havia o mar, e o mar cantava — enquanto o vento soprano, contralto. As águas insinuando cachos na beira, batendo em pedra até virar areia.
Assim cresceu o mundo e restou de lhe caber gente. 










Os pés andando ligeiros tropeçam em coincidências. O que vou dizer soa bobo, e é lindo por isso: para que se faça música é que se inventa instrumento. Que obviedade! Repito assim para que seja claro. Mas há que se mergulhar lá no fundo da verdade. O primeiro instrumento não foi inventado, a música veio antes dele. Olha para a natureza — é tanta coisa que chega não dar pé. As coisas nascem de sussurro e a vida cresce mansinho. Bendito seja nosso polegar! Fruto da calma de mais de muitos séculos. Que uso para ajeitar carinhosamente tuas sobrancelhas, para segurar o lápis enquanto risco. Até chegar nessa perfeiçãozinha, a natureza errou convicta. Se faz necessário errar, é assim que a calma aperfeiçoa. Somos um erro constante rumo àquilo que há de ser. Uns dirão que é um erro amar. Mas agora que sabe disso, que seja! 

Um comentário:

Libania disse...

Teu mundo nao cabe de imaginar tao azul e doce...