terça-feira, dezembro 31, 2013

feliz ano novo


Foto: http://www.flickr.com/photos/honeyuck/



— cortar a hermeticidade do ano com um abridor de datas — eu disse ano passado do ano que viria, que é o que agora dobro e ponho na gaveta. Aquela roupa que não serve mais, e que verei em fotos pensando “olha, como eu gostava dessa camisa!”. E os anos que se foram? Eles eu. Existo disso que passou e me torna o é de agora. O tempo a gente veste mas o que se é caminha em nudez escondida. Cubra essa tua nudez, esse teu tanto ontem — é o que dizem por aí. E tudo vai acontecendo, e o que não acontece também se acumula. É que escolhi me apaixonar sempre, e guardo sempre uma desilusão na geladeira, que abro na fome das madrugadas silenciosas. A existência não é uma Brasília de Niemeyer. E se me alegra essa coisa sem parede, me entristecem as paredes, e rostos que não se veem perto por olhos imados às telas de celulares. Tecnologia touch é a pele do outro que quando toca, toca. E que seja dita a mentira, porque as verdades estão falhando nisso, ou que não se diga nada, é mais profundo assim. E nesse rito de passagem, uma ode aos mortos, morreram de tão vivos que foram. Os bons e os maus. Não é fácil. Gente querendo molhar os pés, e nos querem vender o mar. E o amor, que palavra cafona, meu deus! Por que foram dar nome à esse cafuné na nuca? Por que não só dizer de abraço, e os amantes se olhando balbuciariam — eu te rio, eu te sinto, eu te eu. Na periferia cantam “não existe amor em SP” e a alta escuta com os brancos fones de ouvidos a estalar os dedos. E é branco que se veste em pés na areia, depois de se tanto buzinar no cinza das rodovias. O tempo vai passando e eu sonho com minha filha, se chamará Maria Luiza, ou Cecília, ou Clarice. Quando ela surgir, já lhe pedirei desculpa por ter que ser aqui, não teve outro jeito. Mas mostrarei o que é bonito. Bonito mesmo, sem maquiagem e sem brilho, e que antes de tê-la eu já a tinha nascida em mim. Sonhar é sentir cheiro de comida que nem está no forno ainda. E no céu tantos fogos anunciam: estamos juntos desunidos. Se desejo algo mesmo é que ano que vem soltem afagos de artifício — mentira salvadora, com cheirinho de comida da vovó. Falando em vós, sinto falta das minhas, que moram lá num outro Brasil. A primeira com seus gatos — são mais de trinta, e quando me sento num sofá acabo sentando num rabo se esqueço de olhar, e ela me pede desculpa por ter tantos, isso é bonito pra mim, me lembrarei sempre e contarei para Malu/Cecília/Clarice. A outra tem um quintal bonito que tinha um coqueiro que quando eu observo com olhos de lembrança, penso nele coçando os pés de Deus de tão alto que era; ela, sempre sabida, sentada na cadeira de balanço contando coisas de fazer riso. Ô palavra cafona: Amor. Gosto da definição que meu sobrinho de dois anos dá às coisas, de tentar falar ele pronúncia tudo numa língua que é só dele. Não aprendi direito a dobrar as roupas, e a gente pensa que vai aprendendo a viver, quando viver já acontece no é. Esse ano eu vi um filme em que desde o começo se sabia que a personagem morreria, quando ela morre no entanto, o choro é igual ao de não saber. Passei dias com aquela dorzinha na garganta da morte da personagem inventada, ainda me martela esse silêncio das coisas não durarem. A gente corta a vida com garfo e faca pra caber na boca. Escrevo num único paragrafo porque o ano passou assim, num paragrafo só, e todo assunto se mistura. Escovar os dentes não tira o amarelo de coca-cola (então eles vendem sorrisos brancos). Quero comigo um violão, que a música é a loucura do raciocínio. E desaprender, desaprender, desaprender (ensina os princípios, disse o poeta). Não tenho o rancor do abandono, mas sei que seria melhor aqui. É sempre melhor aqui. Me ser é pleno de outro. Aprendi com uma amiga que quando se abraça, tem que ser de verdade, em quem quer que seja, e ela tem uns cachos que me fazem falta. Com a dança aprendi que as curvas do corpo são possibilidades de encaixe. É o que se aprende também nos trens em hora de pico. Tem gente que diz coisa não porque pensa, mas porque já disseram tanto que ficou normal — não aceito. Não atirai palavras aos porcos. Minha relação se dá na linha dos olhos, aprende-se nas aulas de ponto de fuga em desenho. A arte salva — essa mentirosa. As vezes surge um clarão de entendimento, e se olha para todos como se víssemos de fora do mundo, que se é bicho — esse entendimento é o que a gente tem de mais calado. Ano que vem terei vivo em mim o ano que morre agora, e por aí vai. Quero sentir, e quero panos de prato no fogão escolhidos por ela. Ela quem? Ela. Cortar a hermeticidade do ano com um abridor de datas.

é.

quarta-feira, abril 10, 2013

Blecaute

Ana passa os vestidos de sua filha Maria Luiza enquanto o céu Lua minguante e nuvem caindo água. A menina em noite brinca de lençol pendurando casa nova e pequena. O vapor do ferro sobe e a TV som de novela. Ana assiste, ora ao escândalo forjado, ora os pés de Jorge — que finge calma na agonia de esperar jogo — sobre a mesa de centro.

Lá fora o sujeito esconde o rosto e mostra o ferro que ameaça a vida de Gustavo, que acha que ama Patrícia e deixara sua foto em papel de parede do celular que entrega. Pessoas passam e fingem não ver — minguam. Uma rabiola de pipa, que um menino teve o cuidado de amarrar ponto a ponto do papel de seda que cortara parte a parte, balança ao vento do frio no fio. Já há uns minutos chove e Joana se lamenta de haver esquecido o guarda-chuva enquanto volta da faculdade e sente a franja ensopada grudar na testa — os pensamentos pingam.

A cidade dá esse respiro ultimo e as luzes se apagam.

Todas.

Ana procura velas e grita por Malu, o vestido sobre a tábua queima e não percebe. A menina acha graça e abre a janela para ver.Jorge finge calma na irritação da espera vã do jogo dessa quarta, retira os pés da mesa e respira fundo.

Os que fingiam não ver agora realmente não veem. O sujeito pega o celular e corre no escuro — no dentro de si e no de fora, ofegante. Deixa a arma cair no chão e respira fundo tateando o asfalto. Gustavo pensa no que Patrícia pensaria se o soubesse morto, e que na impossibilidade de dar amor, amaria deveras. Os pensamentos de Joana pingam cegos pelos fios grudados na testa, e ela percebe que a cidade só escuta chuva — sorri, apesar do medo. A rabiola de pipa balança ao vento frio no fio e ninguém vê, nem verá nunca, para sempre.   

Horas passam em breu. Desistidos de esperar, deitam-se e dormem nesse escuro. A chuva insiste no silêncio e todos sentem junto o que nunca será dito por ninguém. 

quinta-feira, março 21, 2013

Outra noite



Vemos uma mulher em seu quarto, a luz da luminária acesa insinua as coisas mais do que mostra deveras. A mulher tem a sua frente uma página em branco posta sobre a máquina de bater palavras. Tem um gosto moderno pelo antigo. Ela sabe que em seu filme haverá duas pessoas, um rapaz barbado e a menina de franja torta e sorriso entre parênteses. Ela não os inventou, estes personagens tão dela, nalgum canto eles vivem, adivinha. O mundo é que será feito peça a peça a se encaixar no que eles são. É que para eles serem o mundo teve que ser antes, daí todo o cuidado. Eles são criaturas que absorvem tudo com sede e fome. Há que se dar comida e água.


Ele deve se encaixar nela. A mulher no quarto bate isso na máquina — Ele se encaixa certinho nela. Isso não vai dito no filme, tem que se saber na respiração dos atores. Poderia até mesmo ser cinema mudo, de tanto que eles têm dito com os olhos. É que a mulher no quarto conheceu um dia o amor, sabe que ele não é de falar muito. Ela, a personagem do filme, gosta de Belle and Sebastian, portanto, Belle and Sebastian só existe para que ela goste e mostre para ele. Então a mulher bate na máquina — Eles ouvem músicas juntos. Ela tira o sapatos e ele então percebe o convite. Dançam. Ela ri do jeito dele, a câmera destaca o rosto dela, de ser a visão dele, e o resto todo é desfoque. Paixão tem esse desfoque nas coisas outras. Os olhos vêem no chão sapatos e a vontade enxerga mesmo os pés. Na parede dele, os quadros em destaque pintam o sorriso dela. Isso dá cena: eles no museu e invés de Klimt, enxerga-se a boca dele no pescoço dela.