quinta-feira, setembro 08, 2011

Bicicleta


Nunca dei pra isso de ser escritora, por isso penso em compor a autobiografia do que não vivi. Parece que na minha existência há mais um não viver do que fatos. Nunca, por exemplo, tive um cachorro.  Nem nunca morri ainda. Parece óbvio dito assim: viver é não ter morrido nunca. Tive certa vez, caminhando na rua, um pensamento que me deixara atônita, quando numa esquina me vi indecisa sobre pegar a minha direita ou continuar, com espanto percebi que estava ali, e estar ali significava ter evitado a morte antes e tanto... — Escrever é salgado como o suor que sai da pele. Às vezes sinto uma dorzinha da saudade de não me ter sido outra. É como dor de cólica, que é como uma fisgada na nossa existência tranquila, que é como uma gota fria numa ducha quente, que é como vírgula no lugar errado, que é como... Para entender uma coisa a gente precisa entender outra coisa que lhe valha em peso. Nisso de não ser escritora eu caibo certinho — as palavras me confundem. Quisera eu ter existido flor. Dói saber que nunca serei flor na vida. Flor ou fruta. Melhor até, esta ultima. Nenhum inventor no mundo será capaz em sua invenção de superar a natureza espontânea de uma fruta. Veja: a mexerica, essa perfeição do acaso. Em pequena eu detestava, hoje sei tanto do seu sabor, de sua ácida doçura, de como já nasce em pedaços de mordida. Nós, a gente toda, tínhamos tudo para sermos espontâneos qual o crescimento das frutas. Eu soube outro dia de um rapaz que criara uma língua tão simples que poderia ser dita por todos os povos. Todos se ouviriam atentos e se compreenderiam. Sugiro, pois, que se reinvente nosso silêncio. Que nos ouçamos com os olhos.

Escrever dói. É isso! Faço-o agora com a respiração presa, de um fôlego só.  
Percebo tanto o que não vivi, é tão clara essa minha ignorância em não ter sido o rapaz que limpou as janelas daquele edifício, os pés que pisou as uvas do vinho que bebo, Klimt ao conhecer as obras de Lautrec, Lautrec ao conhecer as pernas das dançarinas de cancan, uma criança chinesa — é espantoso! nunca saberei como é ter sido criança na china.
Minha autobiografia será um grito no vácuo sem atmosfera. Começará comigo andando de bicicleta. Digo por não ter aprendido nunca a andar de bicicleta. Quando mocinha, minha irmã me carregava sentada sobre o quadro enquanto pedalava. Lembro-me de sentir o som de seu arfar em minha nuca, provavelmente por conta daquele peso a mais que eu era. Eu, tão miúda, não pensava no peso que eu era. Nunca vivi essa felicidade simples de pedalar por conta própria. É preciso perder o medo de cair para se equilibrar direito sobre duas rodas. Eu, de tanto medo de cair, caía; até que desisti.  
No fim da tarde de hoje vi o brilho do sol na poeira das coisas, e vi uma moça, uma bela jovem — lembrava-me as atrizes dos filmes de Godard — andando de bicicleta no silêncio das calçadas. Era como ver alguém lograr o tempo, esse silêncio dela que ia. O vestido todo florido e uma nudez nos olhos (Minha Senhora Padroeira dos Olhos Nus, proteja sempre aqueles olhos, amém!). Quis perguntar-lhe o que sentia quando andava em sua bicicleta. Passou e continuou indo até depois de ficar pequena na distância, lá no final de mim. 

Um comentário:

Samara Oliveira disse...

Lindo seu conto! Mui belo mesmo, Às vezes também me pego vivendo histórias que não vivi, e que provavelmente não viverei. Ao mesmo tempo presa e livre nas utopias de antes e depois da vida que não houve e não haverá. Uma saudade... um sonho... quanto a morte! minha carne ainda não morreu... mas já a senti tantas vezes que a tenho como companheira necessária.